Um ano depois de Gezi: Depois de tudo isto, como o AKP mantém o seu poder?

[Este artigo foi escrito pela ATTAC Portugal. O texto, traduzido pela Paula Gil, foi publicado aqui.]

Em Junho de 2013, milhões por toda a Turquia marcharam contra o governo AKP (Partido Justiça e Desenvolvimento), vendo-se confrontado com oposição brutal da polícia e arriscando as suas vidas. A comunicação social, subitamente, mudou o seu discurso, o “islamismo suave” desapareceu e abriu portas ao “autoritarismo”. Em Dezembro de 2013, um enorme escândalo de corrupção irrompeu, envolvendo vários ministros, incluindo o ministro Recep Tayyip Erdoğan. Ao mesmo tempo, uma dúzia de deputados do AKP que pertenciam ao movimento Gülen (uma organização internacional mafiosa, islâmico-fundamentalista, que funciona através de ligações profundas ao Estado e que, até recentemente, se encontrava em coligação com Erdoğan e, de modo não-oficial, tomava parte no governo) demitiu-se. Parecia que a elite governante estava a desfazer-se enquanto os representantes Europeus e Americanos do imperialismo começaram lentamente a retirar o seu apoio ao governo. Depois vieram as inacreditáveis eleições locais em Março, os protestos MayDay com a agora-já- comum violência policial e, finalmente, a escandalosa explosão de uma mina em Soma com, pelo menos, 300 mortes.

Durante estas tempestades e furacões políticos, Erdoğan fez uma campanha de propaganda com posters dele mesmo com a legenda “Força de Vontade” em todos os metros, cartazes, paragens de autocarro, mesmo nos locais mais inimagináveis. Foi como se estivesse pessoalmente a lutar contra todas as conspiracões que o atacavam. O pico deste foi alcançado quando ele literalmente esmorrou um manifestante em Soma: como em qualquer outro lugar do mundo nos bons velhos tempos, seria de esperar que os cidadãos tentassem acertar em ministros como uma forma de protesto; no caso dele, ele estava protestando contra as pessoas (O Povo / El Pueblo) com absoluta indignação – não esquecer que isto se desenrolou em Soma, após a explosão de uma mina, devido à falta de medidas de segurança e quando cerca de 700 pessoas ainda estavam desaparecidas.

Agora, a pergunta é: como é que ele mantém o seu poder (neste momento, AKP é idêntica à personalidade de Erdoğan) neste tumulto? Como é que ele, com a sua "força de vontade", nunca parece duvidar de que poderia estar a cometer alguns erros?

Esta questão necessita de uma resposta dupla: 1) O que leva o imperialismo a tolerar uma situação tão confusa no único país com presença da NATO no Médio Oriente? Por que razão os EUA não "levam a democracia" para a Turquia? 2) Se uma parcela enorme da sociedade turca está indignada com o governo do AKP, como pode Erdoğan permanecer no poder sem o consentimento da população?

1. Imperialismo e Tayyip: A leveza suportável da falta de alternativas.


§1. Erdoğan é, sem dúvida, o líder mais bem-sucedido de sempre na história da Turquia. Em seu reinado, desde 2002, ele media com sucesso os interesses do imperialismo e os seus próprios objetivos económicos e políticos. Ao mesmo tempo que permitiu todas as reformas impostas UE sobre livre comércio, conseguiu consolidar todas as frações da burguesia nacional (incluindo a destruição de um partido político liberal que teve 9% dos votos nas eleições de 2002). Durante a crise económica, ele balançou entre os interesses da NATO e os seus próprios planos imperialistas de média escala no Médio Oriente, e centralizou todo aparato estatal na sua personalidade, de tal forma que as "ordens" não poderiam ser obtida se fosse retirado da equação.

§2. Face a este papel crucial, há também uma lição aprendida pelo imperialismo desde o regime Bush: Se não temos uma alternativa para impor, "deixando as coisas confusas" pode ser bastante complicado. (ver Iraque e Afeganistão), especialmente na presença de dissidência popular, a instabilidade política resultante da substituição de um governo pelo imperialismo pode ser mais confusa do que nunca (ver Egito e Líbia). Assim, usando métodos mais civilizados, como o fornecimento de armamentos para as forças de oposição (Síria), financiando movimentos burgueses existentes que podem atrair algum apoio popular (Bolívia), e apoiar e treinar milícias contra o governo (Ucrânia) parece ser o método Democrata do imperialismo.

Adicione-se a isso o facto de que a Turquia ser um país da NATO, com bases militares perto de Síria e Irão que exigem estabilidade política no caso de uma crise política internacional no Oriente Médio.

§3. Dada esta nova abordagem vencedora de Prémio Nobel da Paz, todas as agências imperialistas (em cooperação com os maiores industriais na Turquia, bem como o movimento Gülen) tentaram chegar a uma alternativa a Erdoğan. No entanto, conforme explicado em §1, esta foi uma tarefa que se verificou dificil.

§4. Esta falta de alternativas foi endurecida pela forte tendência anti-capitalista da revolta de Junho. Era quase impossível canalizar a raiva dos protestos a uma alternativa burguesa “mais suave”.

2. O Povo e Erdoğan: Isto é o que parece o fascismo.


§1. Nos primeiros anos de seu reinado, Erdoğan jogou o jogo segundo as regras. Ele modificou, reinterpretou e manipulou leis já existentes para suprimir qualquer possibilidade de oposição de outras fações burguesas. Ele monopolizou quase todos os meios de comunicação (cerca de 85% papagueiam propaganda do governo), atribuiu aos seus apoiantes as administrações universitárias, e realocou quase todas as altas funções do Estado. Com isto, introduziu uma reforma constitucional com um “murro na mesa” para a separação de poderes: a partir desse momento, todas as posições jurídicas seriam atribuídas quase que diretamente pelo governo.

§2. Como foi revelado com as gravações de chamadas telefónicas disponíveis, enquanto tomando o controlo do aparelho de Estado, ele coerentemente escolheu uma certa fação da burguesia sobre o resto, várias vezes contra o interesse do grande capital.

§3. Então, quando a revolta de Junho chegou, Erdoğan estava plenamente consciente de que lutava sozinho contra as massas, que as potências imperialistas precisariam de tempo para apresentar uma alternativa, e que se ele silenciasse os protestos o mais rápido possível, poderia reafirmar a sua liderança.

A partir da revolta de Junho, a política tornou-se uma luta pela sobrevivência para Erdoğan. Assim, ele mudou de engrenagem e declarou guerra contra qualquer um que possa ter um motivo para levantar dúvidas sobre sua liderança.

Neste momento, a polícia não hesita em usar balas verdadeiras ao atacar um protesto (uma dessasocasiões, recentemente, causou a morte de duas pessoas em Istambul), enquanto Erdoğan afirmou que as práticas policiais regulares e normais estavam a ser exageradas por "alguns meios de comunicação".

§4. Esta "mudança de marcha" teve um efeito duplo: enquanto tenta demonizar e criminalizar os manifestantes (ou qualquer tipo de oposição), Erdoğan também se marginalizou a si mesmo. Ele opôs- se a todos os protesto, seja uma ação radical revolucionária ou uma procura democrática pacífica. Ele definiu toda a oposição como extremista, empurrando-se, assim, para o outro extremo.

De repente, as práticas comuns, como estudantes do sexo masculino e feminino que dividem apartamentos tornaram-se atos imorais, protestos estudantis tornaram-se ateus e / ou conspirações judaicas (que na linguagem AKP significa "a pior coisa de sempre"), Twitter e Youtube receberam a categorização de meios de atos pecaminosos (e, portanto, foram banidos), e a explosão na mina Soma tornou-se uma enorme conspiração internacional contra o governo.

O AKP ficou menor e menor, mantendo o seu poder na falta de alternativas imperialistas ou populares.

§5. Além disso, Erdoğan percebeu que os protestos de Junho tinham criado grandes oportunidades de diálogo em diferentes sectores da oposição. Uma incrível convergência de preocupações ocorreu na ocupação do parque Gezi: desde privatizações a violência doméstica, desde falta de direitos LGBT a destruição ecológica, desde violações de direitos dos trabalhadores ao nacionalismo, todos os manifestantes descobriram que havia algo em comum nos seus sofrimentos: políticas do AKP e neoliberalismo.

Sentindo-se confiante de que o imperialismo está fadado ao seu reinado devido à falta de alternativas, Erdoğan sabiamente observou que não há nada mais perigoso para o seu governo (e de facto, para toda a sua carreira política) do que esse tipo de convergência na oposição. Isto teve que ser interrompido. Canhões de água mais avançados tiveram que ser comprados, e foram. Todos os departamentos de polícia tiveram de ser reestruturados para cumprir suas ordens pessoais, e foram. Qualquer tipo de protesto tinha que ser imediatamente oprimido, e são.

3. Conclusão


Por um lado, a convergência entre os manifestantes de Junho parece continuar, como visto no funeral de Berkin Elvan, a mobilização contra a proibição do Twitter, e os protestos após o massacre de Soma.

Por outro lado, essa convergência de mentalidades ainda não encontrou a sua forma concreta na convergência política ativa e coerência ideológica.

Quando as pessoas se reúnem, eles fazem uma soma aritmética, e outra coisa é transformar isso em uma soma vectorial que pode exercer uma força para fazer uma mudança. E esta é realmente a - muito difícil - tarefa na frente de todos os movimentos políticos na Turquia.

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