Um dia de estado de emergência




Debaixo da minha cama estão pastas e caixas das minhas notas matemáticas, dum doutoramento desencaixado da minha vida, papelada duma inércia assumida. Centenas de folhas tornam-se hoje papéis de rascunho, rascunhos dum futuro que espero desesperadamente. Guardo ainda os meus favoritos, topologia diferencial e variedades suaves, que me ensinaram identificar beleza na clareza.

Dos onze anos de estudar matemática, cada vez mais pura e abstrata, levo comigo uma compreensão da importância do rigor no pensamento e na comunicação. Lembro-me da minha professora de física a inclinar a sua cabeça enquanto dizia “Not necessarily!”. O que uma definição diz e o que não diz, o que um teorema implica e o que não implica. Lembro-me dos meus amigos de sociologia a discutir militarismo depois da aula, e eu a entender muito pouco da conversa e a criar ainda mais confusão na conversa quando pedi esclarecimento das palavras e dos termos que estavam a usar. Lembro-me, ainda, dos espaços compact, countably compact, pre-compact, sequentially compact, limit point compact, paracompact, e pseudo-compact, como são todos diferentes mas alguns equivalentes em certas circunstâncias. Lembro-me de resolver muitos conflitos, simplesmente esclarecendo a comunicação entre as pessoas. Levo comigo uma disciplina mental que distingue brutalmente o que está a ser dito e o que não necessariamente. Deixo atrás uma profissão e uma boa parte da minha identidade, para criar uma outra que seja compatível com o que é preciso fazer aqui e agora.

Tenho um diário a que chamei Década Zero. Comecei a escrevê-lo no início de 2016, com um profundo luto e pânico face à lacuna entre a realidade social e a crise climática. Na primeira frase lê-se: “Com quem se vai fazer?” É um caderno que tem desabafos, críticas, auto-críticas, avaliações, previsões. Uma mistura de tudo e de nada, como todos os diários. Leio-o agora. Leio-o com medo, e meço as minhas incapacidades com as réguas dos futuros possíveis e impossíveis. Abro gavetas, busco mais réguas, colo-as uma depois da outra. O quarto fica coberto por réguas. As réguas agitam-se. As réguas do presente revoltam-se contra as réguas do passado. Levantam-se barricadas ao lado da cama. As réguas do passado usam gás lacrimogéneo. Todos – as réguas, a cama, a matemática e eu – começamos a chorar. O coro de choro cria um ruído insuportável e acorda o futuro. Ela entra no quarto a gritar. Nós, paramos. Ela diz que a nossa imaginação está cheia de pó e teias de arranhas. Abrimos as janelas para o ar circular. O futuro apanha frio e começa a espirrar. Ninguém sabe o que fazer a seguir. Convoca-se uma assembleia. A matemática e o futuro boicotam. Não há ordem de trabalhos. Ninguém facilita. Tudo fica cada vez mais difícil. Fecho o diário.

Inspiro. Espero. Expiro. O que falta é só tudo.

Vou para a cozinha. Tenho uma montanha de loiça acumulada. Os pratos e as colheres do jantar de ontem, a panela da sopa improvisada, os copos da noite anterior, todos cobertos de açúcar, de gordura, de molho, das minhas inseguranças e frustrações e falhas e faltas e derrotas e arrogâncias e desdéns que inundam o lavatório e o balcão e a cozinha inteira. Nado pela tralha toda e chego à casa de banho, para tomar um duche antes de começar o dia.

O que significa um estado de emergência climática para mim, pessoalmente?

Significa navegar à vela no meio dum furacão, sem qualquer experiência com veleiros, enjoado, em fuga dum fogo, com todos os meus amigos e todas as minhas amigas e toda minha família e todas as réguas e a cama e a matemática e a loiça a bordo, em busca duma terra que sei que existe mas que não sei onde fica. Em outras palavras, significa reavaliar todas as prioridades. Em outras palavras, significa procurar a coragem dentro do susto. Em outras palavras, significa imaginação ao poder.


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