Gosto de contar histórias. Aqui está o que eu vi no dia 25 de abril de 2025. Estou a escrever porque várias pessoas me contactaram por terem-me visto na televisão à frente de uns militantes de extrema-direita perto do Rossio.
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Eu não estava nada a pensar estar lá, de todo, mas deixa-me contextualizar um pouco: Contra o desfile do 25 de abril, grupos de extrema-direita convocaram uma manifestação no Martim Moniz. (Não vou entrar nos debates sobre "autorizado/não-autorizado", que servem para transportar uma discussão política para uma discussão legal liberal.) Eu simplesmente estava a descer pela Avenida Almirante Reis, para entrar no desfile pelos Restauradores. Às 15h (sim, estava atrasado para o desfile) no Martim Moniz vi umas 50 pessoas antifascistas, no lado da Rua da Palma; continuei a descer e não vi mais nada. (Sem ser a PSP ter interdito a entrada na praça inteira, o que parece-me um overdeliver das reivindicações da extrema-direita, expulsando literalmente todas as pessoas do centro da cidade - imigrante não entra mas nem sequer turista entra.)
Quando cheguei à Ginjinha (a.k.a. Largo São Domingos) é que fiquei muito confuso.
Deixa-me delinear o espaço aqui.
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pelas 15h30 |
A zona azul é onde havia polícia. Se não percebes o que esses polícias estão a fazer: pois. (A área azul retangular eram as carrinhas de polícia.)
A zona amarela não era a área da manifestação da extrema-direita. Foi a zona onde eu notei presença da extrema-direita. Nesta zona, estavam
- uns 100-150 militantes de extrema-direita (com dois toldos),
- umas 200-300 pessoas comuns, com cravos ou algo semelhante,
- uma mulher com uma banca a vender cravos,
- uma banda brasileira de músicos de rua,
- uns 100-200 turistas (nas filas para a ginjinha, em excursões a ouvir um guia falar sobre o memorial às vítimas judias, e outros a tirar fotos),
todas elas completamente misturadas.
Aí, eu parei para perceber o que se passava.
Nem dava para avaliar o nível de risco.
A minha primeira conclusão foi de que isto era uma provocação desenhada pela PSP, que estava a gerir a situação.
Nós não tínhamos qualquer organização ou qualquer plano. As pessoas comuns do 25 de abril estavam completamente expostas. Contei umas 5 situações de tensão (alguém diz algo, outro responde, começam aos berros, etc.) num período de 30 minutos.
Decidi ficar para improvisar um contributo para a segurança do desfile de 25 de abril.
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Os militantes de extrema-direita quiseram marchar ainda na direção do Rossio, pelo passeio. Uma linha policial bloqueou-os, tipo assim:
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pelas 16h30 |
Como podes ver, isto foi um ato meramente performativo, para produzir fotos e discursos. Nem a extrema-direita queria realmente entrar na praça, nem a PSP queria realmente bloquear.
Houve um empate estranho nesta configuração.
Foi nessa altura que aconteceu a tal coisa de alguém roubar a bandeira aos fascistas e eles correrem na direção da Praça de Figueira (pela frente da igreja). Isto foi interessante, porque quase provou que não havia qualquer linha de segurança em qualquer direção. Estávamos numa situação muito volátil.
Depois de tirarem as suas fotos e gritarem contra o Moedas e por Portugal, os militantes da extrema-direita finalmente decidiram recuar para o largo. Ficou assim:
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pelas 17h00 |
Esta manobra permitiu consolidar a manifestação deles. (Os polícias desapareceram também.) Neste momento reparei que estavam a fazer o que eu chamaria reuniões de grupos de afinidade. Contei quatro pequenos grupos a avaliar a situação, e a discursar também.
Entretanto já eram 17h e havia muito mais pessoas a chegar ao Rossio, porque o próprio desfile já estava a aproximar-se.
Isto fez-me chegar à minha segunda conclusão. Era preciso cercar a manifestação da extrema-direita e separá-la das pessoas comuns. Isto podia fazer-se com um simples cordão humano. Mas estávamos tão desorganizados que me senti extremamente frustrado com a minha sensação de impotência.
Entretanto aconteceu uma cena. Um grupo de jovens começou a gritar "25 de abril sempre, fascismo nunca mais". Mais pessoas se juntaram, e isso ajudou a separar a extrema-direita do resto. Tipo assim:
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pelas 17h15 |
A parte vermelha são as pessoas que se juntaram às palavras de ordem. A parte vermelha destacada é onde elas foram iniciadas.
Isto serviu de provocação à extrema-direita, que se consolidou e começou a gritar "Portugal".
Eu finalmente consegui tomar um bocadinho de iniciativa e organizei a malta numa linha (que se vê nos vídeos), o que também serviu de segurança para se juntarem mais pessoas atrás de nós.
Então agora finalmente tínhamos duas linhas de frente. A nossa, com braços entrelaçados. A deles, com os "peacekeepers" deles a tentar a acalmar o resto. (Uma anedota interessante é que houve uns 5-10 segundos em que eles conseguiram realmente abafar-nos. (Pode ser só a minha sensação, por estar a 3 metros deles.) Isto aconteceu quando eles trocaram a sua palavra de ordem para "Salazar". Quando os "imigrantes", "islamização", "corrupção" etc. desapareceram e a linha ideológica emergiu das bocas deles é que ficaram realmente animados.)
Por haver duas linhas de frente, nunca se deve concluir automaticamente que há duas frentes. No meio deles continuava a haver uma fila gigante para a ginjinha e turistas a tirar fotos. No meio de nós estava um gajo de extrema-direita literalmente atrás de mim que sozinho conseguiu desfazer a nossa linha. O nosso nível de desorganização continua a surpreender-me a mim, mas pronto, não dava para fazer uma linha melhor naquele momento. Com esta última provocação a linha de frente da extrema-direita também se desfez e eles atacaram, o que produziu aquela confusão que se vê nos vídeos.
Nós, malta pequena, magra e fraca (pessoas comuns, pronto), não temos obviamente qualquer hipótese de entrar em combate físico com aqueles gajos. Uns jovens que não tinham noção dos seus corpos não souberam recuar, outros foram agarrados pelos fascistas, mas em geral conseguiu-se gerir a situação minimamente bem.
Ah, e sim. Na zona vermelha e amarela estão também jornalistas. Só não há nesta zona é polícias. Mas os polícias eventualmente chegaram. E fizeram duas linhas para separar os dois lados. Tipo assim:
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pelas 17h30 |
Uma cena essencial para mim é que estas linhas azuis são deprimentes. Não deveríamos depender da polícia para formá-las. Tínhamos números suficientes para fazê-las três vezes mais fortes. Só não as fizemos por falta de organização, o que por sua vez permitiu a provocação e o riot porn associado nas televisões. Vou voltar a este ponto daqui a nada. Antes, quero continuar a cronologia.
A detenção do Mário Machado etc. acontece depois disto, mas eu quero contar-te mais dois episódios.
O primeiro é: Durante a criação duma linha policial, obviamente há tensão (particularmente porque ficaram pessoas comuns feridas do lado dos fascistas). Eu estava a tentar reagrupar a malta e politizar as palavras de ordem. Isso também implicou puxar umas pessoas que tentavam ultrapassar a linha policial. Nesse momento, um polícia que estava na linha chamou-me, eu fui lá, ele disse-me "olhe cuidado com este rapaz aí com a garrafa", virei a cabeça e realmente estava um rapaz com cara tapada com uma garrafa de cerveja (que centenas de outras pessoas também tinham porque estavam 27ºC nesse dia). Fui falar com o rapaz, ele obviamente não fez nada com aquilo. Mas isto fez-me notar outra coisa: Então afinal os polícias não estavam propositadamente distraídos (como eu achava), estavam mesmo muito atentos não só ao ponto de identificar novos perigos mas também ao ponto de reconhecer quem poderia servir de peacekeeper no momento.
O segundo episódio é que por esta altura chegou o desfile aos Restauradores. A equipa de segurança da organização do desfile veio fazer uma linha atrás desta zona vermelha, ou seja entre a malta antifa e a Praça Dom Pedro IV, e não deixaram outras pessoas a chegar à zona vermelha. Eles articularam isso com o chefe da PSP (achavam que seria uma forma de evitar escalamento), mas com isso efetivamente abandonaram e isolaram as pessoas comuns que estavam a enfrentar polícias e fascistas.
Depois eventualmente a extrema-direita decidiu dispersar-se, e a vida continuou, com a praça outra vez cheia da malta fixe.
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Agora vamos voltar ao riot porn.
Temos de reavaliar os nossos pontos de partida.
A normalidade das décadas anteriores já se foi embora. O colapso climático e as outras crises do capitalismo dão-nos informação, que havemos de aceitar ou negar.
A extrema-direita (como movimento, como políticas públicas e como normas sociais) vai crescer, porque isto é o único modo de governância possível numa sociedade em colapso. (As políticas da extrema-direita muitas vezes serão implementadas pelo "centro", e as organizações de extrema-direita vão manter-se marginais ao poder político.)
Estamos a enganar-nos ao achar que se pode voltar a uma paz social dum passado nostálgico. Essa carta não está no baralho.
A única saída deste cenário é para a frente, com uma política popular radical que põe em causa o sistema socioeconómico em si. O que quer dizer que temos de nos preparar e organizar não só para um contexto diferente mas também para uma tarefa diferente.
Em concreto:
Não basta dizer (apesar de ser correto) que uma contramanifestação antifascista dá mais visibilidade aos fascistas. Há razões estruturais globais que fazem a extrema-direita crescer: com o capitalismo selvagem haverá sempre uma espécie de trickle down dos governos para a militância de extrema-direita. Ou seja, ela não será o inimigo principal, mas vai crescer. Enquanto cresce-se, ignorá-la ou tentar desviar atenção abre espaço a provocações.
É possível conter essas provocações sem lhes dar visibilidade (que a comunicação social tanto quer dar), mas é preciso estarmos organizadas e atentas.
Um grupo de 150 pessoas podiam ter cercado a manifestação de extrema-direita, sem qualquer confronto extra nem precisar de depender da polícia. Essas 150 pessoas podiam ser organizadas duma forma improvisada, se tivéssemos tido uma equipa de 15 pessoas alocada ao propósito. Mas essa alocação só pode acontecer se reconhecermos a nova normalidade em construção e reavaliarmos as nossas premissas sobre estratégia.
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Para arrumar, quero partilhar mais uma coisa.
Alguns amigos viram-me na televisão e ficaram preocupados. Eu estive numa situação de perigo imediato.
Eu estou tranquilo e assustado.
Nós estamos todas numa situação de perigo. Se não nos levantarmos agora, vamos todas estar numa situação de perigo imediato.
Colapso climático desenvolve-se assim. Poucas de nós vamos ser mortas por moléculas de "carbono" ou pelos desastres climáticas. Na seca na Síria na década anterior, poucas morreram de fome ou de escassez de água. A maioria morreu em conflitos sociais. Nós também vamos viver em colapso climático e durante o colapso climático. O colapso climático não é um acontecimento apocalíptico, é uma mudança drástica e chocante das "normalidades".
Ainda não chegámos lá, mas falta-nos pouco tempo. Não arriscar agora não é uma opção. Estamos sempre a arriscar. Ou arriscamos duma forma estratégica e intencional, e teremos uma probabilidade de travar o colapso e mudar de rumo; ou então arriscamos viver numa nova normalidade em que serás tu a ser agredida na rua, na tua casa, no teu trabalho, seja pela extrema-direita, seja pelo governo, seja pela polícia.
Eu estou tranquilo. Preciso de que tu também estejas.
Eu estou assustado. Preciso de que tu também estejas.
Qual é o plano?