Não Ganhou! Referendo na Turquia



Como é que se faz uma campanha política?

Podem ser eleições, pode ser referendo, pode ser até o orçamento participativo.

Tentamos convencer as pessoas para votar assim ou assado. Às vezes não conseguimos convencê-las a votar para a nossa proposta, falhamos, tiramos lições desta experiência, e a luta continua. (Às vezes, nem conseguimos convencer as pessoas para votar, pronto.) E às vezes ganhamos.

Não é?

Não é.

As últimas três votações na Turquia mostraram que se pode convencer as pessoas a votar, a fazer campanhas, a voluntariar para acompanhar a votação e as contagens durante o dia todo, a ir ao Conselho Eleitoral entregar relatórios das contagens de votos, a criar entidades independentes para monitorizar o processo tudo, e se pode perder na mesma.

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2014. Eleições autárquicas. Ganhámos o voto popular em Ancara, em Istambul, em Esmirna. Durante as contagens, acontecem cortes de luz em 40 distritos, com milhares de relatórios de fraude. (Ver a foto das pessoas a segurar os votos.) O Conselho Eleitoral rejeita as objeções. AKP ganha em Istambul e em Ancara.



In Agri, o partido curdo (na altura, BDP) ganha com uma pequena margem. AKP objeta. O Conselho Eleitoral aceita a objeção, repete-se a contagem. BDP ganha. AKP objeta de novo. O Conselho aceita. Conta-se de novo. BDP ganha. AKP objeta de novo. O Conselho aceita. BDP ganha… Quinze vezes! Contaram os votos 15 vezes! No final, o Conselho Eleitoral cancela as eleições e marca novas eleições neste distrito.

2015. Junho. Eleições legislativas. Ganhámos. HDP entra o parlamento, ultrapassando o 10% ao nível nacional, que é por lei o mínimo para ter representação parlamentar. AKP fica com menos de metade das cadeiras. Tayyip dá a iniciativa de formar governo ao AKP. Entretanto começam os atentados. Há quem que se lembra daquela altura em que tivemos um atentado por mês, durante 18 meses, sem pausa. AKP não consegue formar o governo. Os outros partidos começam a negociar alternativas. Mas o Tayyip não dá esta opção. Repete-se as eleições. Novembro. Depois de quatro meses de terror, AKP atrai os votos nacionalistas e ganha maioria.

Julho de 2016. Uma tentativa do golpe de estado falha. Tayyip declara estado de emergência. Dezenas de milhares pessoas são despedidas dos seus empregos. “Ao propósito”, tira-se a imunidade jurídica dos deputados do HDP (e só do HDP). Os lideres são detidos e imediatamente presos.

2017. Referendo sobre alterações constitucionais que mudam o sistema governamental. Com o novo sistema, todos os poderes estão centralizados no Presidente: Ele pode ser partidário. As eleições presidenciais e legislativas são no mesmo tempo (ou seja, a opinião pública dum certo momento determina o Presidente e a composição da AR). Ele pode simplesmente repetir as eleições. Ele escolhe os ministros e o vice-presidente, sem aprovação no parlamento. O Supremo Conselho dos Juízes e Procuradores será nomeado pela AR e pelo Presidente.1 Ou seja, o Presidente determina o governo (a administração), determina as candidaturas dos deputados (legislação) e determina o conselho dos juízes e procuradores (o jurídico).

2017. Abril. Referendo. O “Não” tem um movimento de base. O “Sim” tem todo o estado e a comunicação social. Dia 16. Mais de 85% dos eleitores votam.

Durante as contagens dos votos no estrangeiro, o Conselho Eleitoral anula vários votos por não terem o selo oficial (pelo pedido do AKP). Depois, durante as contagens na Turquia, o mesmo Conselho faz uma decisão abertamente ilegal (também pelo pedido do AKP) de validar os votos sem o selo. Esta decisão apressada faz impossível detetar fraudes e erros.2
A comunicação social abre a cobertura por Sim: ~63%, e durante a noite, este valor sempre diminua. As televisões estão a declarar 96% das urnas abertas com Sim: 51%, enquanto o site oficial do Conselho Eleitoral tem 70% das urnas abertas com Não: 51% . Neste momento, o Primeiro Ministro e o Presidente Tayyip declaram vitória e fazem uns comícios.


Pelas 23h do mesmo dia, já livres de entregar os relatórios, milhares saiam às ruas espontaneamente para dizer "Ele não ganhou. O Não ganhou." As manifestações continuam até 1h. Ainda mais manifestações acontecem no dia 18 de abril, no dia 19, e 20.

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Com os crimes que cometeu, Tayyip tem só duas opções: ou sempre estar a ganhar, ou ficar preso no resto da sua vida. Como qualquer outro fascista, ele nunca vai deixar o seu cargo voluntariamente. Por isso, nunca, nunca, NUNCA deixa a iniciativa aos outros. E por isso, não haverá transição suave para democracia na Turquia. E isto tem enormes implicações sobre a Síria, sobre os refugiados, sobre Curdistão, sobre liberdades básicas, sobre o estado de lei.

Food for thought:
- Qual é a relevância dum lei ou duma constituição se não houver uma força política que obriga as pessoas a cumpri-lo?
- Na Trumpização/Putinização/Tayyipização universalizada, em vez de seguir a agenda deles e sempre estar na defesa/resistência, como tomar a iniciativa política?
- Quando o business-as-usual já é mais do que suficientemente catastrófico (ver: alterações climáticas), como lutar contra o menos mau?

Artigo originalmente publicado na revista Anticapitalista #3, mai/ jun 2017.

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1Não sei se percebe-se isto, porque é demasiado estranho para o contexto europeu. A entidade suprema jurídica é determinada, quatro em quatro anos, pelos eleitos. No todo o mundo, este tipo de entidades têm o seu processo de nomeação e eleição interna. E por causa da separação dos poderes, nem se sabe deles.
2De acordo com a observadora internacional Alev Korun (deputada austríaca), ~2.5 milhões de votos inválidos foram validados durante as contagens. De acordo com o HDP, há uma diferença de 3-4 pontos entre os resultados declarados e os dados do próprio partido.

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