Showing posts with label Portugues. Show all posts
Showing posts with label Portugues. Show all posts

Anti-anti-antifa - relato dum dia de "riot porn"

Gosto de contar histórias. Aqui está o que eu vi no dia 25 de abril de 2025. Estou a escrever porque várias pessoas me contactaram por terem-me visto na televisão à frente de uns militantes de extrema-direita perto do Rossio.

*

Eu não estava nada a pensar estar lá, de todo, mas deixa-me contextualizar um pouco: Contra o desfile do 25 de abril, grupos de extrema-direita convocaram uma manifestação no Martim Moniz. (Não vou entrar nos debates sobre "autorizado/não-autorizado", que servem para transportar uma discussão política para uma discussão legal liberal.) Eu simplesmente estava a descer pela Avenida Almirante Reis, para entrar no desfile pelos Restauradores. Às 15h (sim, estava atrasado para o desfile) no Martim Moniz vi umas 50 pessoas antifascistas, no lado da Rua da Palma; continuei a descer e não vi mais nada. (Sem ser a PSP ter interdito a entrada na praça inteira, o que parece-me um overdeliver das reivindicações da extrema-direita, expulsando literalmente todas as pessoas do centro da cidade - imigrante não entra mas nem sequer turista entra.) 

Quando cheguei à Ginjinha (a.k.a. Largo São Domingos) é que fiquei muito confuso.

Deixa-me delinear o espaço aqui.

 

pelas 15h30

A zona azul é onde havia polícia. Se não percebes o que esses polícias estão a fazer: pois. (A área azul retangular eram as carrinhas de polícia.)

A zona amarela não era a área da manifestação da extrema-direita. Foi a zona onde eu notei presença da extrema-direita. Nesta zona, estavam

- uns 100-150 militantes de extrema-direita (com dois toldos),

- umas 200-300 pessoas comuns, com cravos ou algo semelhante,

- uma mulher com uma banca a vender cravos,

- uma banda brasileira de músicos de rua,

- uns 100-200 turistas (nas filas para a ginjinha, em excursões a ouvir um guia falar sobre o memorial às vítimas judias, e outros a tirar fotos),

todas elas completamente misturadas.

Aí, eu parei para perceber o que se passava. 

Nem dava para avaliar o nível de risco. 

A minha primeira conclusão foi de que isto era uma provocação desenhada pela PSP, que estava a gerir a situação.

Nós não tínhamos qualquer organização ou qualquer plano. As pessoas comuns do 25 de abril estavam completamente expostas. Contei umas 5 situações de tensão (alguém diz algo, outro responde, começam aos berros, etc.) num período de 30 minutos.

Decidi ficar para improvisar um contributo para a segurança do desfile de 25 de abril.

 *

Os militantes de extrema-direita quiseram marchar ainda na direção do Rossio, pelo passeio. Uma linha policial bloqueou-os, tipo assim:

 

pelas 16h30

 

Como podes ver, isto foi um ato meramente performativo, para produzir fotos e discursos. Nem a extrema-direita queria realmente entrar na praça, nem a PSP queria realmente bloquear.

Houve um empate estranho nesta configuração.

Foi nessa altura que aconteceu a tal coisa de alguém roubar a bandeira aos fascistas e eles correrem na direção da Praça de Figueira (pela frente da igreja). Isto foi interessante, porque quase provou que não havia qualquer linha de segurança em qualquer direção. Estávamos numa situação muito volátil.

Depois de tirarem as suas fotos e gritarem contra o Moedas e por Portugal, os militantes da extrema-direita finalmente decidiram recuar para o largo. Ficou assim:

 

pelas 17h00

Esta manobra permitiu consolidar a manifestação deles. (Os polícias desapareceram também.) Neste momento reparei que estavam a fazer o que eu chamaria reuniões de grupos de afinidade. Contei quatro pequenos grupos a avaliar a situação, e a discursar também.

Entretanto já eram 17h e havia muito mais pessoas a chegar ao Rossio, porque o próprio desfile já estava a aproximar-se. 

Isto fez-me chegar à minha segunda conclusão. Era preciso cercar a manifestação da extrema-direita e separá-la das pessoas comuns. Isto podia fazer-se com um simples cordão humano. Mas estávamos tão desorganizados que me senti extremamente frustrado com a minha sensação de impotência.

Entretanto aconteceu uma cena. Um grupo de jovens começou a gritar "25 de abril sempre, fascismo nunca mais". Mais pessoas se juntaram, e isso ajudou a separar a extrema-direita do resto. Tipo assim:

 

pelas 17h15
 

A parte vermelha são as pessoas que se juntaram às palavras de ordem. A parte vermelha destacada é onde elas foram iniciadas.

Isto serviu de provocação à extrema-direita, que se consolidou e começou a gritar "Portugal".

Eu finalmente consegui tomar um bocadinho de iniciativa e organizei a malta numa linha (que se vê nos vídeos), o que também serviu de segurança para se juntarem mais pessoas atrás de nós. 

Então agora finalmente tínhamos duas linhas de frente. A nossa, com braços entrelaçados. A deles, com os "peacekeepers" deles a tentar a acalmar o resto. (Uma anedota interessante é que houve uns 5-10 segundos em que eles conseguiram realmente abafar-nos. (Pode ser só a minha sensação, por estar a 3 metros deles.) Isto aconteceu quando eles trocaram a sua palavra de ordem para "Salazar". Quando os "imigrantes", "islamização", "corrupção" etc. desapareceram e a linha ideológica emergiu das bocas deles é que ficaram realmente animados.)

Por haver duas linhas de frente, nunca se deve concluir automaticamente que há duas frentes. No meio deles continuava a haver uma fila gigante para a ginjinha e turistas a tirar fotos. No meio de nós estava um gajo de extrema-direita literalmente atrás de mim que sozinho conseguiu desfazer a nossa linha. O nosso nível de desorganização continua a surpreender-me a mim, mas pronto, não dava para fazer uma linha melhor naquele momento. Com esta última provocação a linha de frente da extrema-direita também se desfez e eles atacaram, o que produziu aquela confusão que se vê nos vídeos.

Nós, malta pequena, magra e fraca (pessoas comuns, pronto), não temos obviamente qualquer hipótese de entrar em combate físico com aqueles gajos. Uns jovens que não tinham noção dos seus corpos não souberam recuar, outros foram agarrados pelos fascistas, mas em geral conseguiu-se gerir a situação minimamente bem.

Ah, e sim. Na zona vermelha e amarela estão também jornalistas. Só não há nesta zona é polícias. Mas os polícias eventualmente chegaram. E fizeram duas linhas para separar os dois lados. Tipo assim:

 

pelas 17h30
 

Uma cena essencial para mim é que estas linhas azuis são deprimentes. Não deveríamos depender da polícia para formá-las. Tínhamos números suficientes para fazê-las três vezes mais fortes. Só não as fizemos por falta de organização, o que por sua vez permitiu a provocação e o riot porn associado nas televisões. Vou voltar a este ponto daqui a nada. Antes, quero continuar a cronologia.

A detenção do Mário Machado etc. acontece depois disto, mas eu quero contar-te mais dois episódios.

O primeiro é: Durante a criação duma linha policial, obviamente há tensão (particularmente porque ficaram pessoas comuns feridas do lado dos fascistas). Eu estava a tentar reagrupar a malta e politizar as palavras de ordem. Isso também implicou puxar umas pessoas que tentavam ultrapassar a linha policial. Nesse momento, um polícia que estava na linha chamou-me, eu fui lá, ele disse-me "olhe cuidado com este rapaz aí com a garrafa", virei a cabeça e realmente estava um rapaz com cara tapada com uma garrafa de cerveja (que centenas de outras pessoas também tinham porque estavam 27ºC nesse dia). Fui falar com o rapaz, ele obviamente não fez nada com aquilo. Mas isto fez-me notar outra coisa: Então afinal os polícias não estavam propositadamente distraídos (como eu achava), estavam mesmo muito atentos não só ao ponto de identificar novos perigos mas também ao ponto de reconhecer quem poderia servir de peacekeeper no momento.

O segundo episódio é que por esta altura chegou o desfile aos Restauradores. A equipa de segurança da organização do desfile veio fazer uma linha atrás desta zona vermelha, ou seja entre a malta antifa e a Praça Dom Pedro IV, e não deixaram outras pessoas a chegar à zona vermelha. Eles articularam isso com o chefe da PSP (achavam que seria uma forma de evitar escalamento), mas com isso efetivamente abandonaram e isolaram as pessoas comuns que estavam a enfrentar polícias e fascistas.

Depois eventualmente a extrema-direita decidiu dispersar-se, e a vida continuou, com a praça outra vez cheia da malta fixe.

*

Agora vamos voltar ao riot porn.

Temos de reavaliar os nossos pontos de partida.

A normalidade das décadas anteriores já se foi embora. O colapso climático e as outras crises do capitalismo dão-nos informação, que havemos de aceitar ou negar. 

A extrema-direita (como movimento, como políticas públicas e como normas sociais) vai crescer, porque isto é o único modo de governância possível numa sociedade em colapso. (As políticas da extrema-direita muitas vezes serão implementadas pelo "centro", e as organizações de extrema-direita vão manter-se marginais ao poder político.)

Estamos a enganar-nos ao achar que se pode voltar a uma paz social dum passado nostálgico. Essa carta não está no baralho. 

A única saída deste cenário é para a frente, com uma política popular radical que põe em causa o sistema socioeconómico em si. O que quer dizer que temos de nos preparar e organizar não só para um contexto diferente mas também para uma tarefa diferente.

Em concreto: 

Não basta dizer (apesar de ser correto) que uma contramanifestação antifascista dá mais visibilidade aos fascistas. Há razões estruturais globais que fazem a extrema-direita crescer: com o capitalismo selvagem haverá sempre uma espécie de trickle down dos governos para a militância de extrema-direita. Ou seja, ela não será o inimigo principal, mas vai crescer. Enquanto cresce-se, ignorá-la ou tentar desviar atenção abre espaço a provocações. 

É possível conter essas provocações sem lhes dar visibilidade (que a comunicação social tanto quer dar), mas é preciso estarmos organizadas e atentas. 

Um grupo de 150 pessoas podiam ter cercado a manifestação de extrema-direita, sem qualquer confronto extra nem precisar de depender da polícia. Essas 150 pessoas podiam ser organizadas duma forma improvisada, se tivéssemos tido uma equipa de 15 pessoas alocada ao propósito. Mas essa alocação só pode acontecer se reconhecermos a nova normalidade em construção e reavaliarmos as nossas premissas sobre estratégia.

*

Para arrumar, quero partilhar mais uma coisa. 

Alguns amigos viram-me na televisão e ficaram preocupados. Eu estive numa situação de perigo imediato.

 Eu estou tranquilo e assustado.

Nós estamos todas numa situação de perigo. Se não nos levantarmos agora, vamos todas estar numa situação de perigo imediato.

Colapso climático desenvolve-se assim. Poucas de nós vamos ser mortas por moléculas de "carbono" ou pelos desastres climáticas. Na seca na Síria na década anterior, poucas morreram de fome ou de escassez de água. A maioria morreu em conflitos sociais. Nós também vamos viver em colapso climático e durante o colapso climático. O colapso climático não é um acontecimento apocalíptico, é uma mudança drástica e chocante das "normalidades".

Ainda não chegámos lá, mas falta-nos pouco tempo. Não arriscar agora não é uma opção. Estamos sempre a arriscar. Ou arriscamos duma forma estratégica e intencional, e teremos uma probabilidade de travar o colapso e mudar de rumo; ou então arriscamos viver numa nova normalidade em que serás tu a ser agredida na rua, na tua casa, no teu trabalho, seja pela extrema-direita, seja pelo governo, seja pela polícia. 

Eu estou tranquilo. Preciso de que tu também estejas.

Eu estou assustado. Preciso de que tu também estejas. 

Qual é o plano?

 

Não sei

 O que foi?, perguntou.

Só faço merda, respondeu.

Ficou confuso: Não percebo nada do que dizes.

Ninguém gosta de mim, fez de conta de esclarecer.

És bué toina, concluiu.

Que horror...




Olá, Esquerda, temos de falar

Temos de falar de estratégia, mas na verdade antes disso temos de falar sobre ontologia (lamento).

Desde que tirou-se a essência revolucionária da teoria anti-capitalista (lê-se: Marx sem Lenine, Lenine sem Fidel, etc.), todo o movimento progressista tornou-se uma espécie de ferramenta de comunicação, sem qualquer agência própria. A pergunta filosófica é: Qual é o objeto dum movimento?

Por exemplo, como se define sucesso ou fracasso do movimento pela habitação? E o movimento laboral? Ou movimento pela justiça climática?

A sensação que tenho é que estamos confortáveis.

O nosso auto-critério parece-me: o objetivo dum coletivo pela justiça climática é defender a justiça climática. Que confortável, não é? Sendo assim, nunca falhamos. “O que fizeste ontem?” - “Defendi uma posição.” - “Que bom. Podes dormir hoje à noite tranquilamente e nas próximas noites também.”

Isto é uma posição absolutamente idealista – e aqui uso a palavra idealista no sentido da “Família Sagrada” (Bruno Bauer e companhia).

As ideias não são o objeto da atividade política. As condições reais são.

Proponho um mandato completamente diferente:

O objeto dum coletivo pela justiça climática é atingir justiça climática.

Cada ano em que perdemos dezenas de milhares de pessoas à crise climática é um ano de fracasso desse coletivo. Cada euro de subsídio que vai à indústria fóssil é um falhanço desse coletivo. Cada ano em que as emissões em Portugal não diminuem 10% mostra a fraqueza do movimento.

O coletivo não pode estar tranquilo. Não pode não rever tudo que tentou. Não pode não estar a tentar novas formas de ação, de estratégia, de organização e de comunicação.

Isto aplica-se a todos os movimentos. Vê a diferença entre conformismo e integridade:

  • uma organização socialista cujo critério de sucesso é se cada ano estamos mais próximos do socialismo VS uma organização que faz agitação cega sobre socialismo sem qualquer reporte mensurável

  • um movimento pela habitação que ganha habitação pública e digna VS um movimento pela habitação que defende habitação

  • uma organização pela democracia que torna a socidade mais democrática VS uma organização pela democracia que fala da importância da democracia

  • uma empresa que faz tudo para aumentar o seu lucro VS uma empresa que envia comunicados a dizer que lucro é fixe

  • uma organização fascista que transforma a sociedade VS uma organização fascista que faz conferências de imprensa

As primeiras aqui são organizações materialistas.

As segundas são idealistas, mas são mais que isso: estão confortáveis e são completamente unaccountable: não prestam contas a ninguém e nunca vão prestar; nunca falham; nunca entram em crise existencial em que questionam tudo que fizeram e fazem; resumidamente: estão bem, dormem bem. De facto, estão alienadas dos seus valores.

Esta alienação é emocional e pessoal, e é também política e estratégica. Vamos então falar um pouco da estratégia.


Lembras-te do Alan Kurdi? O rapaz sírio de dois anos cujo corpo foi encontrado numa praia da Turquia em 2015, morto numa tentativa de fugir da guerra civil da Síria provocado pela seca mais forte que o país enfrentou e alimentado pelos imperialismos de costume (com o Estado Turco como o ator principal na equação).

A fotografia dele apareceu nas capas dos jornais na Europa.

Ele foi encontrado numa praia que eu ia às vezes para nadar.

Alan continua a ter dois anos.

Ele pergunta-me:

Tu que sabes da crise climática e do mundo em que vivemos. O que fazes? Estás a ganhar? Já tentaste tudo?


Eu respondo-lhe:

Eu sensibilizei, e sensibilizo. Eu fiz agitação e propaganda, e faço. Eu votei, e voto. Eu marchei e manifestei-me, e continou a marchar.

E não. Eu estou a perder.

As organizações e os movimentos em que estou inserido, nós sabemos o que se passa. Sabemos que o que te matou é simultaneamente um sistema económico complexo e um sistema social mantido por pessoas reais. Sabemos que precisamos do apoio e envolvimento popular. Precisamos de disrupção para parar a destruição (diz o António Guterres). E nós estamos a falhar.

Estamos a perder-te, estamos a perder amigos, estamos a perder cidades internas à crise climática. E isto é só o início.

E não, não tentámos tudo. Aliás, cada mês, pelo menos uma vez, apanho-me a repetir os meus hábitos de ativismo que tenho porque não sei quantas décadas atrás alguém fez aquilo dessa forma.

No fundo, sou negacionista também: é difícil compreender um colapso civilizacional – não tenho ferramentas cognitivas para conectar com isso.

Não consigo dormir uma noite inteira.

Acordo com o teu sorriso.

Hoje vou aprender dos erros meus e dos erros dos meus companheiros.

Amanhã vou fazer melhor.



Espera-se milhares de milhões de refugiados climáticos até 2050. Ou seja, vai haver centenas de Alan Kurdis.

Podemos tentar desresponsabilizar-nos: os governos e as empresas declararam guerra contra a sociedade e o planeta; não somos nós – as pessoas comuns – quem causa isso.

Mas somos nós quem dá consentimento ao genocídio e ao ecocídio.

E se dizemos que somos “politizados” ou “organizados”, jamais podemos desresponsabilizar-nos. Cada dia em que o sistema ganha é uma lembrete do nosso fracasso. Não podemos dizer que estamos a fazer “alguma coisa”, temos de fazer “a coisa”: temos de parar a crise climática. Todas as nossas estratégias devem ser ancoradas nesse ponto final e não num taticismo ou na repetição dumas atividades que alguém utilizou cem anos atrás.



Ou vivemos num estado de emergência climática, ou vivemos num business-as-usual. São os dois lados da mesma moeda, mas se estamos em estado de emergência climática, então não dá não tomar riscos sérios: riscos políticos, riscos estratégicos, riscos pessoais, riscos organizacionais, riscos emocionais…



Estamos num estado de guerra. Estão a matar-nos, num ato de violência lenta, deliberado e coordenado.

Não escolhemos estar neste sítio. Mas cada dia, fazemos escolhas sobre o que fazemos neste sítio.

Temos de parar a destruição e construir a paz. Enraizados em igualdade, justiça, democracia e liberdade, temos de travar esta aflição. Com amor e raiva, com medo e coragem, guiados por solidariedade, temos de parar a ebolição global.

Tentámos tudo?

Um dia de estado de emergência




Debaixo da minha cama estão pastas e caixas das minhas notas matemáticas, dum doutoramento desencaixado da minha vida, papelada duma inércia assumida. Centenas de folhas tornam-se hoje papéis de rascunho, rascunhos dum futuro que espero desesperadamente. Guardo ainda os meus favoritos, topologia diferencial e variedades suaves, que me ensinaram identificar beleza na clareza.

Dos onze anos de estudar matemática, cada vez mais pura e abstrata, levo comigo uma compreensão da importância do rigor no pensamento e na comunicação. Lembro-me da minha professora de física a inclinar a sua cabeça enquanto dizia “Not necessarily!”. O que uma definição diz e o que não diz, o que um teorema implica e o que não implica. Lembro-me dos meus amigos de sociologia a discutir militarismo depois da aula, e eu a entender muito pouco da conversa e a criar ainda mais confusão na conversa quando pedi esclarecimento das palavras e dos termos que estavam a usar. Lembro-me, ainda, dos espaços compact, countably compact, pre-compact, sequentially compact, limit point compact, paracompact, e pseudo-compact, como são todos diferentes mas alguns equivalentes em certas circunstâncias. Lembro-me de resolver muitos conflitos, simplesmente esclarecendo a comunicação entre as pessoas. Levo comigo uma disciplina mental que distingue brutalmente o que está a ser dito e o que não necessariamente. Deixo atrás uma profissão e uma boa parte da minha identidade, para criar uma outra que seja compatível com o que é preciso fazer aqui e agora.

Tenho um diário a que chamei Década Zero. Comecei a escrevê-lo no início de 2016, com um profundo luto e pânico face à lacuna entre a realidade social e a crise climática. Na primeira frase lê-se: “Com quem se vai fazer?” É um caderno que tem desabafos, críticas, auto-críticas, avaliações, previsões. Uma mistura de tudo e de nada, como todos os diários. Leio-o agora. Leio-o com medo, e meço as minhas incapacidades com as réguas dos futuros possíveis e impossíveis. Abro gavetas, busco mais réguas, colo-as uma depois da outra. O quarto fica coberto por réguas. As réguas agitam-se. As réguas do presente revoltam-se contra as réguas do passado. Levantam-se barricadas ao lado da cama. As réguas do passado usam gás lacrimogéneo. Todos – as réguas, a cama, a matemática e eu – começamos a chorar. O coro de choro cria um ruído insuportável e acorda o futuro. Ela entra no quarto a gritar. Nós, paramos. Ela diz que a nossa imaginação está cheia de pó e teias de arranhas. Abrimos as janelas para o ar circular. O futuro apanha frio e começa a espirrar. Ninguém sabe o que fazer a seguir. Convoca-se uma assembleia. A matemática e o futuro boicotam. Não há ordem de trabalhos. Ninguém facilita. Tudo fica cada vez mais difícil. Fecho o diário.

Inspiro. Espero. Expiro. O que falta é só tudo.

Vou para a cozinha. Tenho uma montanha de loiça acumulada. Os pratos e as colheres do jantar de ontem, a panela da sopa improvisada, os copos da noite anterior, todos cobertos de açúcar, de gordura, de molho, das minhas inseguranças e frustrações e falhas e faltas e derrotas e arrogâncias e desdéns que inundam o lavatório e o balcão e a cozinha inteira. Nado pela tralha toda e chego à casa de banho, para tomar um duche antes de começar o dia.

O que significa um estado de emergência climática para mim, pessoalmente?

Significa navegar à vela no meio dum furacão, sem qualquer experiência com veleiros, enjoado, em fuga dum fogo, com todos os meus amigos e todas as minhas amigas e toda minha família e todas as réguas e a cama e a matemática e a loiça a bordo, em busca duma terra que sei que existe mas que não sei onde fica. Em outras palavras, significa reavaliar todas as prioridades. Em outras palavras, significa procurar a coragem dentro do susto. Em outras palavras, significa imaginação ao poder.


Ep.3 Reducing the entire Portuguese culture to 5 expressions

In the previous lectures, I covered the two Portuguese expressions that can guide my pupils through at least three quarters of the daily life situations in Portugal.

In this lecture, I will introduce another expression, which will take you to an advanced level of social interactions. 

3. "Já agora"

This may come a little surprising to people who know the language, but what do I care? It was also surprising to you when I said I would reduce the entire Portuguese culture into five expressions.

I can hear your objections already. Já agora translates to  by the way, which is a very common expression in virtually all languages. So why highlight it as an authentically Portuguese phenomenon? I will teach you now.

First of all, in all cultures I am familiar with (which are quite a few, although a tiny minority in the world), the usage of by the way is allowed only after you finish a line of thought. If you are telling a story, you are expected to first finish your story and only then add a side note with a by the way; if you are having a conversation, you are expected to first respond to the question at hand and only then add a new subject.

What is original is that in Portugal you can start an email with já agora. People who have been in active mailing lists can testify for this phenomenon: There is an email thread about a collaborative text, then someone goes "Já agora, how did the meeting with the artists go?". And everyone replies! Which says that this is socially acceptable way of introducing an irrelevant subject.

Better still, you can interrupt a real life conversation among friends with já agora and just talk about whatever you wanted to talk about.

For the first few years, when this happened, I would start laughing out loud because I was reminded of the "And now for something completely different" in Monty Python's Flying Circus.

Then, I got used to it.

Upgrading your social skills

Now that we established its social license, let us analyze why Já agora is so important in Portugal?

Because it upgrades your social skills from passive to active, from defensive to offensive.

Imagine the following situation: You speak little Portuguese. You are with some friends and you want to tell a story. You understand absolutely nothing of what they are talking about, but using Pois and Depende. you are capable of dodging opinion-based as well as fact-based questions. (See previous lectures.) But besides accompanying the conversation, you really want to tell what happened at the dinner party the other night.

In any other country, you would have to wait for the conversation to end with an explicit silent moment (unless you understand the subject and find a way of smoothly shifting the focus). In Portugal, you only need já agora. Insert já agora at any point, and voila! You magically created a socially legitimate context to start telling your story.

To sum up: If you grasp the scope and functionality of já agora fully and correctly, you can be proactive - in addition to the more defensive strategies of depende. and pois.

If you want to "be a local", I highly recommend the "Pois. [pause 1 second] Já agora." combination, where you not only introduce your topic out of nowhere but also acknowledge everything that was said before.


At the test period of this project, I personally tested the power of já agora in various situations. To name a few, it worked in a family dinner, during a chat with friends, in an official meeting, at the public administration office, and in the health center. I was giving a talk on climate science and I literally jumped from topic to topic using já agora twice. Later I asked for feedback from the audience and people thought that my presentation was coherent.

I strongly recommend the class to practice it wisely. Já agora is not equal to by the way. It is much more subtle and has much more cultural functions. An overdose may harm your social relations.


To conclude, we now have three expressions that not only cover an overwhelming majority of all social interactions but also give you defensive as well as offensive tools of conversation. In the next lesson, we will enter into more delicate situations.




Ep.2 Reducing the entire Portuguese culture to 5 expressions

Last week, I introduced my personal project of reducing the entire Portuguese daily-life interactions into five basic expressions. I also introduced the first of these expressions, pois, and explained its wide and encompassing use. I finished by saying that "most of Portuguese social life, around 50% of all the essentials, is just understanding and using pois. The rest is all optional."

In this lecture I would like to introduce another very important Portuguese phenomenon.

2. "Depende."

While sometimes used in a slightly longer form ("Isso depende."), this sentence, directly and easily translatable to "It depends." or "Depends." has one uniquely Portuguese aspect:

It has a period at the end.

You ask a simple, straightforward question to a Portuguese person. Let's think. Something like: "Would you like to go to the movies?" or "Wanna go to this bar?" or "What are your holiday plans?" or "How much would a university graduate earn in Lisbon?". Then you get an answer:

"It depends."

And this bizarre non-answer is socially acceptable.

Depends on what? If it depends on X or Y, how does it depend on them?

The Portuguese person cannot be bothered with such technicalities. It depends. Period.

Now, if you actually wanted an answer, the Portuguese person will not let you get it so quickly. I had a real-life example which at first was a bit annoying but it slowly turned outright hilarious.

Me getting a ride from a friend: How long do you think we take to get there?
Friend: It depends.
Me: ??
Friend: ...
Me: Depends on what?
Friend: Pois olha, if there is traffic, we may take quite a while. If the roads are empty, we would be pretty quick. With this rain, there may also be an accident.
Me: ????
Friend: ...
Me: Yeah okay, but that's all obvious. I actually need to know this to plan the rest of my day.
Friend: Pois.
Me: ????!!!!
Friend: ...
Me: I mean, if there is traffic, will be take, like, seven hours?
Friend: NO! Que disparate! We would never take that long.
Me: So, how long at most? Five hours?
Friend: , if there is an accident the whole can take four hours.
Me: Great. Now, if the roads are all empty, how long to we take? One hour?
Friend: NO! There's no way we can get there in an hour.
Me: OK, so... two hours? (trying not to laugh out loud)
Friend: Once I did this trip at night, with no cars, it took me like two-and-a-half hours, maybe a bit more.
Me: Wonderful. Thanks, let me text my friends.

True story.

What's the moral here?

As you may remember, Pois acts as a void answer that may mean affirmation, rejection, neither or both. (See previous lecture.) It allows you to avoid giving any opinion in a socially acceptable way.

Depende. (always with a dot throughout these lecture notes), on the other hand, allows you to avoid giving factual information in a socially acceptable way.

And I am serious: Portuguese people actually take "Depende." as a full answer and move on to a different subject without hesitation. It really is socially acceptable.

So if you want to get information, you really have to be persistent and patient. But if you don't want to get information or you simply don't want to think about the question, you can just randomly shoot "Isso depende." and you are juuuuust fine.

When I noticed the power of "Depende.", I was astonished. Initially, I used to think "They just don't care! And they are okay with each other not caring!"; but then I realized something else:

Application of reduction

You may have heard that Portuguese people are always very calm and peaceful. They even made an armed revolution without using the arms! It is true that Portuguese culture is probably one of the most peaceful and chilled cultures in the world.

But how does it work? How come the Portuguese are always so calm? (Just next door, Spanish are so not famous for calmness.)

The equation "Pois + Depende." is your answer.

The entire culture allows you to not give a shit about neither opinions nor facts! You can dodge literally anything that can give you the slightest discomfort. Voila! The calmness is a linear combination of Pois and Depende. .

Thereby, we solved one of the long-lasting mysteries of the Portuguese culture by the rigorous application of only two expressions.


In my next lecture, I will address some of the remaining aspects of the Portuguese daily-life, although I should warn you: very little cultural content is left that is not covered by these two expressions.


The entire Portuguese culture reduced to 5 expressions

In today's lecture, I would like to introduce the five expressions that can explain the entire Portuguese culture.

With these five expressions, you can comprehend and engage in all kinds of day-to-day social interactions. Many Portuguese people are not aware of the power and scope of these expressions, although they do admit their common use.

1. "Pois."

This is a lifesaver. It is somewhere around "right!", "right?", "well..." and "well?". It is neither of them and it is all of them. (It can also be used as "because".)

But besides its meaning, it has one power that no other expression in any language has: Lets the conversation flow no matter what. Here's how:

When you are a foreigner and you are talking about a sophisticated subject or interacting with a child or an elderly, sometimes you don't understand what is being said. In such cases, unless it is important, it is generally considered kind to just nod, smile or say something like "yeah", "right", etc. None of this works if the speaker poses a Yes/No question. You cannot nod, you cannot smile, you cannot say "yes" until understanding the question. But you can always say "Pois.", and the speaker will continue with his/her story.

It's like a void affirmation.

In my first few years in Portugal, I was very reluctant to engage in conversations with strangers because of my lack of language skills. Then I discovered the power of pois. I still had extremely limited vocabulary, a messy and improvised grammar, and extremely narrow experience in listening, but I had pois! I managed having full conversations with the locals in the south, in the interior, in the north, in cities, in villages, everywhere... Yes, I admit that I understood maybe a third of what that alentejana old lady told me, but she doesn't know that! And I did understand the essential: her children living abroad and visiting only very seldom. I didn't catch their profession, their ages, etc. but who cares: it was just a chitchat in a pastelaria where we had a coffee in passing. I didn't have to constantly stop her speech to ask for repetition. It was a pleasant moment for both of us.

But this is just the beginning. Here is an opposite situation:

(Me in Social Security office asking for a document)
Me: So, I need this number to enroll to my university.
Lady in the counter: Well but you need to bring us your income proof first.
Me: My income will be a scholarship. I will take care of that right after enrolling to the university.
Lady in the counter: Okay but we need the income document to give you the Social Security number.
Me: ??
Lady in the counter: ...
Me: But I cannot get the scholarship without enrolling to a university, and I cannot enroll without this number. So I need the number to get my income.
Lady in the counter: Pois.

If this looks surreal, you can confirm with your Portuguese friends... even better if you talk to immigrants in Portugal. 

Please read the above dialogue carefully: this is a void denial.

So the same word can work for answering anything, to the extent that you can evade a Yes/No question by simply affirming the speaker's point, as well as not answering anything, to the extent that you can evade a direct, objective question. The same word is for void affirmation and for void denial.

Pois is so void that it fits everywhere and resolves everything.

I told my Portuguese friends about this multi-functionality and they all responded: Pois!

When I started this "personal project" of reducing the Portuguese culture into five expression, the real challenge was: what in the Portuguese culture is not covered by pois? What social situation may not be explained by pois? So my problem was not to get enough expressions to cover all the situations, but to look for situations that are not covered by pois. I found a few, but I should admit: most of Portuguese social life, around 50% of all the essentials, is just understanding and using pois. The rest is all optional.

Next time, I will tell you the second expression.


Não Ganhou! Referendo na Turquia



Como é que se faz uma campanha política?

Podem ser eleições, pode ser referendo, pode ser até o orçamento participativo.

Tentamos convencer as pessoas para votar assim ou assado. Às vezes não conseguimos convencê-las a votar para a nossa proposta, falhamos, tiramos lições desta experiência, e a luta continua. (Às vezes, nem conseguimos convencer as pessoas para votar, pronto.) E às vezes ganhamos.

Não é?

Não é.

As últimas três votações na Turquia mostraram que se pode convencer as pessoas a votar, a fazer campanhas, a voluntariar para acompanhar a votação e as contagens durante o dia todo, a ir ao Conselho Eleitoral entregar relatórios das contagens de votos, a criar entidades independentes para monitorizar o processo tudo, e se pode perder na mesma.

*

2014. Eleições autárquicas. Ganhámos o voto popular em Ancara, em Istambul, em Esmirna. Durante as contagens, acontecem cortes de luz em 40 distritos, com milhares de relatórios de fraude. (Ver a foto das pessoas a segurar os votos.) O Conselho Eleitoral rejeita as objeções. AKP ganha em Istambul e em Ancara.



In Agri, o partido curdo (na altura, BDP) ganha com uma pequena margem. AKP objeta. O Conselho Eleitoral aceita a objeção, repete-se a contagem. BDP ganha. AKP objeta de novo. O Conselho aceita. Conta-se de novo. BDP ganha. AKP objeta de novo. O Conselho aceita. BDP ganha… Quinze vezes! Contaram os votos 15 vezes! No final, o Conselho Eleitoral cancela as eleições e marca novas eleições neste distrito.

2015. Junho. Eleições legislativas. Ganhámos. HDP entra o parlamento, ultrapassando o 10% ao nível nacional, que é por lei o mínimo para ter representação parlamentar. AKP fica com menos de metade das cadeiras. Tayyip dá a iniciativa de formar governo ao AKP. Entretanto começam os atentados. Há quem que se lembra daquela altura em que tivemos um atentado por mês, durante 18 meses, sem pausa. AKP não consegue formar o governo. Os outros partidos começam a negociar alternativas. Mas o Tayyip não dá esta opção. Repete-se as eleições. Novembro. Depois de quatro meses de terror, AKP atrai os votos nacionalistas e ganha maioria.

Julho de 2016. Uma tentativa do golpe de estado falha. Tayyip declara estado de emergência. Dezenas de milhares pessoas são despedidas dos seus empregos. “Ao propósito”, tira-se a imunidade jurídica dos deputados do HDP (e só do HDP). Os lideres são detidos e imediatamente presos.

2017. Referendo sobre alterações constitucionais que mudam o sistema governamental. Com o novo sistema, todos os poderes estão centralizados no Presidente: Ele pode ser partidário. As eleições presidenciais e legislativas são no mesmo tempo (ou seja, a opinião pública dum certo momento determina o Presidente e a composição da AR). Ele pode simplesmente repetir as eleições. Ele escolhe os ministros e o vice-presidente, sem aprovação no parlamento. O Supremo Conselho dos Juízes e Procuradores será nomeado pela AR e pelo Presidente.1 Ou seja, o Presidente determina o governo (a administração), determina as candidaturas dos deputados (legislação) e determina o conselho dos juízes e procuradores (o jurídico).

2017. Abril. Referendo. O “Não” tem um movimento de base. O “Sim” tem todo o estado e a comunicação social. Dia 16. Mais de 85% dos eleitores votam.

Durante as contagens dos votos no estrangeiro, o Conselho Eleitoral anula vários votos por não terem o selo oficial (pelo pedido do AKP). Depois, durante as contagens na Turquia, o mesmo Conselho faz uma decisão abertamente ilegal (também pelo pedido do AKP) de validar os votos sem o selo. Esta decisão apressada faz impossível detetar fraudes e erros.2
A comunicação social abre a cobertura por Sim: ~63%, e durante a noite, este valor sempre diminua. As televisões estão a declarar 96% das urnas abertas com Sim: 51%, enquanto o site oficial do Conselho Eleitoral tem 70% das urnas abertas com Não: 51% . Neste momento, o Primeiro Ministro e o Presidente Tayyip declaram vitória e fazem uns comícios.


Pelas 23h do mesmo dia, já livres de entregar os relatórios, milhares saiam às ruas espontaneamente para dizer "Ele não ganhou. O Não ganhou." As manifestações continuam até 1h. Ainda mais manifestações acontecem no dia 18 de abril, no dia 19, e 20.

*

Com os crimes que cometeu, Tayyip tem só duas opções: ou sempre estar a ganhar, ou ficar preso no resto da sua vida. Como qualquer outro fascista, ele nunca vai deixar o seu cargo voluntariamente. Por isso, nunca, nunca, NUNCA deixa a iniciativa aos outros. E por isso, não haverá transição suave para democracia na Turquia. E isto tem enormes implicações sobre a Síria, sobre os refugiados, sobre Curdistão, sobre liberdades básicas, sobre o estado de lei.

Food for thought:
- Qual é a relevância dum lei ou duma constituição se não houver uma força política que obriga as pessoas a cumpri-lo?
- Na Trumpização/Putinização/Tayyipização universalizada, em vez de seguir a agenda deles e sempre estar na defesa/resistência, como tomar a iniciativa política?
- Quando o business-as-usual já é mais do que suficientemente catastrófico (ver: alterações climáticas), como lutar contra o menos mau?

Artigo originalmente publicado na revista Anticapitalista #3, mai/ jun 2017.

***

1Não sei se percebe-se isto, porque é demasiado estranho para o contexto europeu. A entidade suprema jurídica é determinada, quatro em quatro anos, pelos eleitos. No todo o mundo, este tipo de entidades têm o seu processo de nomeação e eleição interna. E por causa da separação dos poderes, nem se sabe deles.
2De acordo com a observadora internacional Alev Korun (deputada austríaca), ~2.5 milhões de votos inválidos foram validados durante as contagens. De acordo com o HDP, há uma diferença de 3-4 pontos entre os resultados declarados e os dados do próprio partido.

Um ano depois de Gezi: Depois de tudo isto, como o AKP mantém o seu poder?

[Este artigo foi escrito pela ATTAC Portugal. O texto, traduzido pela Paula Gil, foi publicado aqui.]

Em Junho de 2013, milhões por toda a Turquia marcharam contra o governo AKP (Partido Justiça e Desenvolvimento), vendo-se confrontado com oposição brutal da polícia e arriscando as suas vidas. A comunicação social, subitamente, mudou o seu discurso, o “islamismo suave” desapareceu e abriu portas ao “autoritarismo”. Em Dezembro de 2013, um enorme escândalo de corrupção irrompeu, envolvendo vários ministros, incluindo o ministro Recep Tayyip Erdoğan. Ao mesmo tempo, uma dúzia de deputados do AKP que pertenciam ao movimento Gülen (uma organização internacional mafiosa, islâmico-fundamentalista, que funciona através de ligações profundas ao Estado e que, até recentemente, se encontrava em coligação com Erdoğan e, de modo não-oficial, tomava parte no governo) demitiu-se. Parecia que a elite governante estava a desfazer-se enquanto os representantes Europeus e Americanos do imperialismo começaram lentamente a retirar o seu apoio ao governo. Depois vieram as inacreditáveis eleições locais em Março, os protestos MayDay com a agora-já- comum violência policial e, finalmente, a escandalosa explosão de uma mina em Soma com, pelo menos, 300 mortes.

Durante estas tempestades e furacões políticos, Erdoğan fez uma campanha de propaganda com posters dele mesmo com a legenda “Força de Vontade” em todos os metros, cartazes, paragens de autocarro, mesmo nos locais mais inimagináveis. Foi como se estivesse pessoalmente a lutar contra todas as conspiracões que o atacavam. O pico deste foi alcançado quando ele literalmente esmorrou um manifestante em Soma: como em qualquer outro lugar do mundo nos bons velhos tempos, seria de esperar que os cidadãos tentassem acertar em ministros como uma forma de protesto; no caso dele, ele estava protestando contra as pessoas (O Povo / El Pueblo) com absoluta indignação – não esquecer que isto se desenrolou em Soma, após a explosão de uma mina, devido à falta de medidas de segurança e quando cerca de 700 pessoas ainda estavam desaparecidas.

Agora, a pergunta é: como é que ele mantém o seu poder (neste momento, AKP é idêntica à personalidade de Erdoğan) neste tumulto? Como é que ele, com a sua "força de vontade", nunca parece duvidar de que poderia estar a cometer alguns erros?

Esta questão necessita de uma resposta dupla: 1) O que leva o imperialismo a tolerar uma situação tão confusa no único país com presença da NATO no Médio Oriente? Por que razão os EUA não "levam a democracia" para a Turquia? 2) Se uma parcela enorme da sociedade turca está indignada com o governo do AKP, como pode Erdoğan permanecer no poder sem o consentimento da população?

1. Imperialismo e Tayyip: A leveza suportável da falta de alternativas.


§1. Erdoğan é, sem dúvida, o líder mais bem-sucedido de sempre na história da Turquia. Em seu reinado, desde 2002, ele media com sucesso os interesses do imperialismo e os seus próprios objetivos económicos e políticos. Ao mesmo tempo que permitiu todas as reformas impostas UE sobre livre comércio, conseguiu consolidar todas as frações da burguesia nacional (incluindo a destruição de um partido político liberal que teve 9% dos votos nas eleições de 2002). Durante a crise económica, ele balançou entre os interesses da NATO e os seus próprios planos imperialistas de média escala no Médio Oriente, e centralizou todo aparato estatal na sua personalidade, de tal forma que as "ordens" não poderiam ser obtida se fosse retirado da equação.

§2. Face a este papel crucial, há também uma lição aprendida pelo imperialismo desde o regime Bush: Se não temos uma alternativa para impor, "deixando as coisas confusas" pode ser bastante complicado. (ver Iraque e Afeganistão), especialmente na presença de dissidência popular, a instabilidade política resultante da substituição de um governo pelo imperialismo pode ser mais confusa do que nunca (ver Egito e Líbia). Assim, usando métodos mais civilizados, como o fornecimento de armamentos para as forças de oposição (Síria), financiando movimentos burgueses existentes que podem atrair algum apoio popular (Bolívia), e apoiar e treinar milícias contra o governo (Ucrânia) parece ser o método Democrata do imperialismo.

Adicione-se a isso o facto de que a Turquia ser um país da NATO, com bases militares perto de Síria e Irão que exigem estabilidade política no caso de uma crise política internacional no Oriente Médio.

§3. Dada esta nova abordagem vencedora de Prémio Nobel da Paz, todas as agências imperialistas (em cooperação com os maiores industriais na Turquia, bem como o movimento Gülen) tentaram chegar a uma alternativa a Erdoğan. No entanto, conforme explicado em §1, esta foi uma tarefa que se verificou dificil.

§4. Esta falta de alternativas foi endurecida pela forte tendência anti-capitalista da revolta de Junho. Era quase impossível canalizar a raiva dos protestos a uma alternativa burguesa “mais suave”.

2. O Povo e Erdoğan: Isto é o que parece o fascismo.


§1. Nos primeiros anos de seu reinado, Erdoğan jogou o jogo segundo as regras. Ele modificou, reinterpretou e manipulou leis já existentes para suprimir qualquer possibilidade de oposição de outras fações burguesas. Ele monopolizou quase todos os meios de comunicação (cerca de 85% papagueiam propaganda do governo), atribuiu aos seus apoiantes as administrações universitárias, e realocou quase todas as altas funções do Estado. Com isto, introduziu uma reforma constitucional com um “murro na mesa” para a separação de poderes: a partir desse momento, todas as posições jurídicas seriam atribuídas quase que diretamente pelo governo.

§2. Como foi revelado com as gravações de chamadas telefónicas disponíveis, enquanto tomando o controlo do aparelho de Estado, ele coerentemente escolheu uma certa fação da burguesia sobre o resto, várias vezes contra o interesse do grande capital.

§3. Então, quando a revolta de Junho chegou, Erdoğan estava plenamente consciente de que lutava sozinho contra as massas, que as potências imperialistas precisariam de tempo para apresentar uma alternativa, e que se ele silenciasse os protestos o mais rápido possível, poderia reafirmar a sua liderança.

A partir da revolta de Junho, a política tornou-se uma luta pela sobrevivência para Erdoğan. Assim, ele mudou de engrenagem e declarou guerra contra qualquer um que possa ter um motivo para levantar dúvidas sobre sua liderança.

Neste momento, a polícia não hesita em usar balas verdadeiras ao atacar um protesto (uma dessasocasiões, recentemente, causou a morte de duas pessoas em Istambul), enquanto Erdoğan afirmou que as práticas policiais regulares e normais estavam a ser exageradas por "alguns meios de comunicação".

§4. Esta "mudança de marcha" teve um efeito duplo: enquanto tenta demonizar e criminalizar os manifestantes (ou qualquer tipo de oposição), Erdoğan também se marginalizou a si mesmo. Ele opôs- se a todos os protesto, seja uma ação radical revolucionária ou uma procura democrática pacífica. Ele definiu toda a oposição como extremista, empurrando-se, assim, para o outro extremo.

De repente, as práticas comuns, como estudantes do sexo masculino e feminino que dividem apartamentos tornaram-se atos imorais, protestos estudantis tornaram-se ateus e / ou conspirações judaicas (que na linguagem AKP significa "a pior coisa de sempre"), Twitter e Youtube receberam a categorização de meios de atos pecaminosos (e, portanto, foram banidos), e a explosão na mina Soma tornou-se uma enorme conspiração internacional contra o governo.

O AKP ficou menor e menor, mantendo o seu poder na falta de alternativas imperialistas ou populares.

§5. Além disso, Erdoğan percebeu que os protestos de Junho tinham criado grandes oportunidades de diálogo em diferentes sectores da oposição. Uma incrível convergência de preocupações ocorreu na ocupação do parque Gezi: desde privatizações a violência doméstica, desde falta de direitos LGBT a destruição ecológica, desde violações de direitos dos trabalhadores ao nacionalismo, todos os manifestantes descobriram que havia algo em comum nos seus sofrimentos: políticas do AKP e neoliberalismo.

Sentindo-se confiante de que o imperialismo está fadado ao seu reinado devido à falta de alternativas, Erdoğan sabiamente observou que não há nada mais perigoso para o seu governo (e de facto, para toda a sua carreira política) do que esse tipo de convergência na oposição. Isto teve que ser interrompido. Canhões de água mais avançados tiveram que ser comprados, e foram. Todos os departamentos de polícia tiveram de ser reestruturados para cumprir suas ordens pessoais, e foram. Qualquer tipo de protesto tinha que ser imediatamente oprimido, e são.

3. Conclusão


Por um lado, a convergência entre os manifestantes de Junho parece continuar, como visto no funeral de Berkin Elvan, a mobilização contra a proibição do Twitter, e os protestos após o massacre de Soma.

Por outro lado, essa convergência de mentalidades ainda não encontrou a sua forma concreta na convergência política ativa e coerência ideológica.

Quando as pessoas se reúnem, eles fazem uma soma aritmética, e outra coisa é transformar isso em uma soma vectorial que pode exercer uma força para fazer uma mudança. E esta é realmente a - muito difícil - tarefa na frente de todos os movimentos políticos na Turquia.