Olá, Esquerda, temos de falar

Temos de falar de estratégia, mas na verdade antes disso temos de falar sobre ontologia (lamento).

Desde que tirou-se a essência revolucionária da teoria anti-capitalista (lê-se: Marx sem Lenine, Lenine sem Fidel, etc.), todo o movimento progressista tornou-se uma espécie de ferramenta de comunicação, sem qualquer agência própria. A pergunta filosófica é: Qual é o objeto dum movimento?

Por exemplo, como se define sucesso ou fracasso do movimento pela habitação? E o movimento laboral? Ou movimento pela justiça climática?

A sensação que tenho é que estamos confortáveis.

O nosso auto-critério parece-me: o objetivo dum coletivo pela justiça climática é defender a justiça climática. Que confortável, não é? Sendo assim, nunca falhamos. “O que fizeste ontem?” - “Defendi uma posição.” - “Que bom. Podes dormir hoje à noite tranquilamente e nas próximas noites também.”

Isto é uma posição absolutamente idealista – e aqui uso a palavra idealista no sentido da “Família Sagrada” (Bruno Bauer e companhia).

As ideias não são o objeto da atividade política. As condições reais são.

Proponho um mandato completamente diferente:

O objeto dum coletivo pela justiça climática é atingir justiça climática.

Cada ano em que perdemos dezenas de milhares de pessoas à crise climática é um ano de fracasso desse coletivo. Cada euro de subsídio que vai à indústria fóssil é um falhanço desse coletivo. Cada ano em que as emissões em Portugal não diminuem 10% mostra a fraqueza do movimento.

O coletivo não pode estar tranquilo. Não pode não rever tudo que tentou. Não pode não estar a tentar novas formas de ação, de estratégia, de organização e de comunicação.

Isto aplica-se a todos os movimentos. Vê a diferença entre conformismo e integridade:

  • uma organização socialista cujo critério de sucesso é se cada ano estamos mais próximos do socialismo VS uma organização que faz agitação cega sobre socialismo sem qualquer reporte mensurável

  • um movimento pela habitação que ganha habitação pública e digna VS um movimento pela habitação que defende habitação

  • uma organização pela democracia que torna a socidade mais democrática VS uma organização pela democracia que fala da importância da democracia

  • uma empresa que faz tudo para aumentar o seu lucro VS uma empresa que envia comunicados a dizer que lucro é fixe

  • uma organização fascista que transforma a sociedade VS uma organização fascista que faz conferências de imprensa

As primeiras aqui são organizações materialistas.

As segundas são idealistas, mas são mais que isso: estão confortáveis e são completamente unaccountable: não prestam contas a ninguém e nunca vão prestar; nunca falham; nunca entram em crise existencial em que questionam tudo que fizeram e fazem; resumidamente: estão bem, dormem bem. De facto, estão alienadas dos seus valores.

Esta alienação é emocional e pessoal, e é também política e estratégica. Vamos então falar um pouco da estratégia.


Lembras-te do Alan Kurdi? O rapaz sírio de dois anos cujo corpo foi encontrado numa praia da Turquia em 2015, morto numa tentativa de fugir da guerra civil da Síria provocado pela seca mais forte que o país enfrentou e alimentado pelos imperialismos de costume (com o Estado Turco como o ator principal na equação).

A fotografia dele apareceu nas capas dos jornais na Europa.

Ele foi encontrado numa praia que eu ia às vezes para nadar.

Alan continua a ter dois anos.

Ele pergunta-me:

Tu que sabes da crise climática e do mundo em que vivemos. O que fazes? Estás a ganhar? Já tentaste tudo?


Eu respondo-lhe:

Eu sensibilizei, e sensibilizo. Eu fiz agitação e propaganda, e faço. Eu votei, e voto. Eu marchei e manifestei-me, e continou a marchar.

E não. Eu estou a perder.

As organizações e os movimentos em que estou inserido, nós sabemos o que se passa. Sabemos que o que te matou é simultaneamente um sistema económico complexo e um sistema social mantido por pessoas reais. Sabemos que precisamos do apoio e envolvimento popular. Precisamos de disrupção para parar a destruição (diz o António Guterres). E nós estamos a falhar.

Estamos a perder-te, estamos a perder amigos, estamos a perder cidades internas à crise climática. E isto é só o início.

E não, não tentámos tudo. Aliás, cada mês, pelo menos uma vez, apanho-me a repetir os meus hábitos de ativismo que tenho porque não sei quantas décadas atrás alguém fez aquilo dessa forma.

No fundo, sou negacionista também: é difícil compreender um colapso civilizacional – não tenho ferramentas cognitivas para conectar com isso.

Não consigo dormir uma noite inteira.

Acordo com o teu sorriso.

Hoje vou aprender dos erros meus e dos erros dos meus companheiros.

Amanhã vou fazer melhor.



Espera-se milhares de milhões de refugiados climáticos até 2050. Ou seja, vai haver centenas de Alan Kurdis.

Podemos tentar desresponsabilizar-nos: os governos e as empresas declararam guerra contra a sociedade e o planeta; não somos nós – as pessoas comuns – quem causa isso.

Mas somos nós quem dá consentimento ao genocídio e ao ecocídio.

E se dizemos que somos “politizados” ou “organizados”, jamais podemos desresponsabilizar-nos. Cada dia em que o sistema ganha é uma lembrete do nosso fracasso. Não podemos dizer que estamos a fazer “alguma coisa”, temos de fazer “a coisa”: temos de parar a crise climática. Todas as nossas estratégias devem ser ancoradas nesse ponto final e não num taticismo ou na repetição dumas atividades que alguém utilizou cem anos atrás.



Ou vivemos num estado de emergência climática, ou vivemos num business-as-usual. São os dois lados da mesma moeda, mas se estamos em estado de emergência climática, então não dá não tomar riscos sérios: riscos políticos, riscos estratégicos, riscos pessoais, riscos organizacionais, riscos emocionais…



Estamos num estado de guerra. Estão a matar-nos, num ato de violência lenta, deliberado e coordenado.

Não escolhemos estar neste sítio. Mas cada dia, fazemos escolhas sobre o que fazemos neste sítio.

Temos de parar a destruição e construir a paz. Enraizados em igualdade, justiça, democracia e liberdade, temos de travar esta aflição. Com amor e raiva, com medo e coragem, guiados por solidariedade, temos de parar a ebolição global.

Tentámos tudo?